segunda-feira, abril 24, 2006

Há dias cinzentos e outros tão ensolarados...

"Battle from the Heavens" - Nicholas Roerich

Há dias cinzentos e outros tão ensolarados e quentes em que não nos apetece sair.
Liliana pensava nisto enquanto ía buscar água.

Mas há aquelas pessoas, que quer faça chuva quer faça sol, sempre sorriem ao tempo...
Quando o calor aperta a ponto de quase nos sufocar, que abrasa a terra e põe a cigarra a cantar, é altura de apreciar os sítios frescos, as sombras.
Procuramos abrigo na vegetação mais densa, vamos para perto da água,seja rio ou seja mar.
A terra cresta e estala por falta de água e a sensação é a de estarmos expostos ao fogo, ou num forno e sermos nós os cozinhados!

Quando chove, é a terra sedenta que bebe, é a vegetação que se lava, é o fogo que abranda, é a água que corre para o rio e deste até ao mar... Até o ar fica lavado...
Se o frio aperta e chega mesmo a nevar, é tempo de fazer lume e lareiras e ao pé delas lembrar histórias antigas, de outras eras.

Entre os dois extremos, as duas estações temperadas, em equilibrios diferentes.
Uma irrompe de vida e acorda a natureza, outra pausadamente saboreia-a, prepara e cuida do seu repouso.

Liliana continuava pensando :Tudo muda, tudo gira e tudo se complementa.
Um copo de água gelada é tão apetecível no Verão, quanto o é um cházinho quente no Inverno.

Com a bilha cheia de água, mais do que ao tempo, Liliana sorria à Vida!

Liliana

Sei que quero Luz...

"Awaiting One" - Nicholas Roerich


Os planetas combinaram

e aquilo que eles disseram,

ninguém sabe, ninguém viu.

Eu existo como prova

daquilo que eles quiseram.

Mesmo sem dizerem nada,

olhem só, estou aqui!

Sem saber que estrada é esta,

ou aonde me conduz,

não sabendo quase nada,

sei porém que quero Luz!


Liliana

quarta-feira, abril 12, 2006

Em cada dia, mais um dia...


Liliana tinha uma espécie de diário, um bloco velho com papel quadriculado, onde tomava notas de pensamentos, ideias e até escrevia cartas que nunca daí saíam.


Frequentemente divagava, pegava no bloco e voltava a fechá-lo tal e qual o abrira... Observava como os pensamentos são velozes, não se deixando prender assim tão facilmente.

Como seria descrever o voo dum pássaro a percorrer mundos sem fim? Planando sobre tudo o que acontecia, vendo-se a si,vendo com os olhos da própria vida?

Estava tudo sempre tão certo...

Visto assim, era fácil, tão fácil que parecia até ridículo.Era só viver e pronto.

E o paradoxo era ser isso o mais difícil!

Como é que, em cada dia, tínhamos um dia novinho em folha e acabávamos sempre por “borrar a pintura”?!

Liliana começara a escrever.

Tinha um bando de palavras preso na garganta, outro na ponta dos dedos...

Pensava: “soltaram-se e desde então é o que se vê...”

E sorriu a mais um dia.


Liliana, 12 de Abril de 2006

sábado, abril 08, 2006

O bicho...

O ar estava abafado e Liliana, que andara toda a manhã a colher ervas medicinais para pôr a secar, estava cansada.

Sentou-se numa pedra à entrada da gruta e pensou que no seu interior devia estar muito mais fresco que ali.

Precisava espalhar as ervas primeiro à sombra, para que secassem lentamente, assim os seus princípios activos mantinham-se de forma mais segura.

Depois de mais esse esforço, olhou em volta e o tempo enevoado era no entanto quente, pesado, sem que uma brisa viesse suavisar aquela tarde.

Entrou pela abertura disfarçada, desceu e ía antecipando a frescura e o descanso, quando de repente se deparou com tudo remexido e tresmalhado pelo chão. Algum bicho tinha andado por ali...

De vez em quando havia animais que se aventuravam pelos túneis até à gruta e aquela sala maior que usava como sua casa, era visitada por intrusos normalmente mais pacatos e inofensivos.

Depois de tudo arrumado, finalmente sentou-se e lentamente foi-se relaxando.

O ritmo cardíaco abrandou, o número de respirações e a amplitude das mesmas, o ritmo do pulsar do sangue nas veias, tudo parecia abrandar progressivamente...

Fechou os olhos e sentiu-se resvalar como quem cai num abismo enorme e fundo que parecia não ter fim.

Passado um pouco ainda continuava a cair.

Caía mais e mais, não havia meio de terminar até que sem saber porquê, começou a planar.

Voava como quem não tivesse feito outra coisa toda a vida. Mas só tinha sentidos, não tinha corpo. Podia ver, mas não se via. Podia ouvir ou sentir odores, mas sem ser com um orgão especial do corpo que não tinha. Toda ela ouvia, toda ela sentia enquanto planava, sem corpo, sem asas, sem nada...

Era bom e ao mesmo tempo estranho, sem fazer diferença alguma entre uma coisa e outra.

Era translúcida, planava e pronto.

Também nem sequer pensava, observava tudo o que via numa dimensão diferente, como se fosse natural perceber tudo e saber tudo acerca do que via.

Um barulho despertou-a daquele voo, daquele planar sem asas, viajando mais depressa que a luz, estava na caverna de novo.

Um pouco tonta, olhava em redor tentando perceber de onde vinha o barulho que ouvira.

Tudo em sossego. Nem um restolhar, que era costume quando um animal caía inadvertidamente numa das entradas da gruta. Mal sentia o cheiro humano, afastavam-se naturalmente.

Desta vez não, tinha sido um bicho qualquer espavorido, com dimensão suficiente para derramar recipientes, arrastar roupas e tudo. Pôs-se a escutar, tentando ao menos detectar de que lado viria o som.

Cada vez mais atenta ao mínimo ruído, lá se ajoelhou encostando o ouvido ao chão, para melhor detectar o som e que tipo de som. Sem dúvida vinha do túnel que conduzia à floresta. Levantou-se, dirigindo-se a esse lado da gruta, quando de novo se ouviram cascos, nítidamente agora. Cada vez mais depressa conforme se aproximavam.

Liliana correu pelo túnel fora, atrás daquele torpel, até se deixar de ouvir qualquer barulho de novo. Dada a distância percorrida, pouco faltava para a saída. Correu um pouco mais até saír também. A tarde já chegara ao início do seu fim.

Ao longe, pela silhueta, uma cabrita maltêsa abanava a cabeça, tentando libertar-se de um pano velho ou serapilheira, que se havia enredado nas suas presas não a deixando livre para poder ver.

Liliana, abanando por sua vez a cabeça, ainda incrédula, sorriu ao final de mais um dia.

7 de Abril de 2006

As duas aldeias...

Hoje era daqueles dias em que Liliana costumava pegar em si e pôr-se a escrever, como quem toca piano e sabe de cor o sítio exacto onde colocar os dedos.

Mas em vez disso resolveu sair.

Tinha chovido, foi ver nas redondezas os estragos da intempérie. Em vez da escrita a escorrer-lhe da ponta dos dedos, era a água a escorrer-lhe por fora e por dentro.

A Terra dessedentou-se, pensava, mas precisava ser assim tão violentamente encharcada, fustigada tão fortemente? Até os elementos têm os seus dias...

Campos fora havia pequenas poças aqui e ali, ramos caídos, uma pernada maior, um pedaço de hera que se desprendera, vários indícios da bravura com que se abateram a água e os ventos violentos naquelas bandas.

Nas redondezas não se viam pegadas, nem gente, nem animais, tinham vindo por ali ultimamente. Com mau tempo não há quem não se proteja...

Encontrara um botão, perto de um monte de pedras ao pé do poço. Sempre que ali

vinha espreitava e dizia: -Aaaah!.. e ouvia o som de volta.

Na água, cujo nível tinha subido consideravelmente, boiavam pedaços de folhas e ervas. Ouvia barulhos estranhos aos quais ficava atenta, tentando adivinhar o que seriam.

Dali avistava-se a montanha, além deste gigante ficava o vale imenso com o rio, que o percorria serpenteando e separando as duas aldeias, uma em cada margem.

Sempre em competição, as aldeias, a ver a que levava de vencida: nas festas a melhor música, nos animais, nas colheitas e até nas romarias. Mesmo na criançada: uns porque tinham visto um lagarto com asas, os outros que não, que não, isso não existia e ninguém conseguia ter melhor cão do que aquele que achava tesouros, coisas escondidas e antigas...

Aí, lembrava-se, tinha subido de tom a disputa e chegado aos adultos, que os achados de um lado eram melhores que os do outro; uns que as grutas eram maiores que as do outro lado... Não fora o tremor de terra a gerar a união de esforços e tinham chegado a vias de facto a dada altura.

Liliana ficou a pensar que, tal como os individuos têm necessidade de se afirmar e fazer ressaltar o que é particular e único neles, o que no fundo os distingue dos demais, também a dimensão social e de entreajuda vem à tona como factor de sobrevivência em qualquer comunidade. É assim com as pessoas, as aldeias, os países...

É preciso relacionar, ter mente de cientista e observar como quem espreita ao microscópio e se vê a si mesmo na lamela a espernear...

Liliana ria-se sózinha, tinha passado mais um dia.

6 de Abril de 2006

O pinheiro...

Aqui em frente vive um pinheiro.

Não é um pinheiro qualquer: é enorme e decerto muito mais velho que eu.

Há anos que o vejo dar pinhas e pinhões, que enche tudo em volta de caruma e que nos abriga do sol em demasia bem como da chuva.

Vive num jardim aqui em frente, tem por companhia flores diversas, uma sebe em volta da rede que os cerca e mais uma dúzia de ciprestes bem mais jovens e recentes.

Ele é imenso, viçoso, possante, talvez como resultado da rega regular do jardim, cresceu e fortaleceu-se como quem se expande equilibradamente.

Já viveu escaldões de Verão, ventos agrestes, enchurradas, suportou obras e também uns quantos descuidos temporários.

Viveu por ali uma ninhada de gatos que afiava as unhas no seu tronco, o qual serviu também para aprenderem a trepar e a cair quando eram principiantes.

Nos seus ramos abriga, ao longo do dia, bandos de pardais de telheiro, pombos e outros pássaros.

No Verão cheira a resina intensamente. Às horas de mais calor, parece emitir ondas de odor ininterruptas.

Hoje vim escrever sobre ele, porque de repente, realizei que este pinheiro imenso foi um dia apenas um pinhãozinho e além disso não se queixa!

29 de Março de 2006

Recordação de infância...

Os paralelipipedos de basalto luzidio, banhados pela chuva, cresciam desmedidamente como écrans negros gigantes, vistos por aqueles olhos fixos por detrás das vidraças.

Em miúda começára a sonhar acordada, não sei com que memória antiga a perder-se em névoas distantes.

Ideias que tinha, às vezes assaltavam-na como se fossem gigantes que a engoliam.

Ficava presa delas por tempos infindos.

Ainda hoje era concerteza de olhar sonhador que revia a sua juventude em Lisboa.

Em caixas de sapatos todas perfuradas alimentara bichos da seda com folhas de amoreira que apanhava no Castelo de S. Jorge.

Por essa altura andava-se mais de carro eléctrico e era ainda em burros e carroças que chegavam os víveres ao mercado da Ribeira vindos dos arredores.

Nos bairros populares os candeeiros eram acesos à noite por um homem que voltava de manhã para apagá-los.

As mercearias de bairro vendiam quartas de açucar, litros de grão e de feijão e postas e caras de bacalhau que embrulhavam em papel vegetal e depois em papel pardo.

Nas limpezas usavam-se as barrelas e sabonárias e havia o sabão amarelo para o soalho.

Nas drogarias e farmácias vendiam-se coisas muito pouco complicadas que resolviam os problemas das nódoas e das enfermidades mais corriqueiras.

Crescera assim embalada numa espécie de neblina que suporta e sustenta uma ingenuidade genuina, mas esta brigava sempre com o resto do dia a dia, até que um dia pensou que nunca se integraria, seria rebelde sempre... e sózinha.

Ao longo dos anos aprendera no entanto que havia coisas bonitas, como laços feitos de fios ínvisíveis que ligavam as pessoas...então com o seu olhar distante sorria...

21 de Fevereiro de 2006

A dádiva...


Liliana vivia perto da costa, numa gruta.

A gruta tinha túneis que davam acesso a vários sítios.

Meteu-se por um deles que dava para o mar e aí chegada, sentou-se numa pedra a pensar...

-Que prenda poderia ela dar à divindade pois que se aproximava o dia de lha levar?

Era este o seu problema ultimamente,mas por mais que pensasse não conseguia achar nada suficientemente valioso.

Liliana sabia que outros teriam outros meios e mais ideias, até valores que não pensava almejar, mas ela queria algo intrínseco, próprio, único - que só um deus a sério poderia entender que seria mesmo dela.

E assim passou bastante tempo a ver o mar...

Deus tinha tudo, fosse o que fosse que levasse...

Voltou à gruta, melancólica... Ía aquecer-se ao lume, talvez surgisse uma ideia...

As ideias vinham em desfile, mas Liliana não lhes achou proveito, não podia adiar mais.

Metendo-se por outro túnel bem comprido foi sair junto a um monte de pedras cobertas de musgo e a uns arbustos que disfarçavam a entrada.

O terreno alongava-se campos fora com árvores dispersas quase a perder de vista, não fora ao longe, enfileiradas, as que bordejavam a floresta.

Parecia-lhe impossível, mas por mais que lhe ocorresssem ideias, nada lhe parecia suficientemente bom e estava de mãos vazias.

À sua volta o céu era azul claro,havia pouco vento e tudo tinha tons de verde, claros e escuros em contraste com a terra de barro acastanhado. Pelo caminho em direcção à floresta sentiu que as suas vestes de linho e serapilheira talvez não fossem as mais apropriadas, mas também não tinha outras.

Olhou os pés e as sandálias e então viu-a: uma folhinha..uma folha verde simples, mas bem delineada, com a nervura inteira, lanceolada, sem estar partida ou carcomida,de um verde intenso e perfeitinha. Era como uma folha pode ser, só folha, simples e que no entanto em si encerrava a história toda, porque em si estava contida a essência da natureza.

-Só um deus irá perceber o que lhe quero dizer quando lha entregar, porque é tudo o que tenho e não possuo mais que isto. Ele vai compreender...

Isto ía Liliana pensando enquanto se embrenhava mais e mais pela floresta.

Chegou a uma clareira aonde havia um lago e aí era suposto alguém vir receber os presentes para levar à divindade. Não lhe pareceu ver ningém no lago rodeado de pedras, até que o movimento suave denunciou uma criança. Quase nu, só com uma tanga,levantou-se e esperou que Liliana se aproximasse para lhe entregar aquilo que levava.

Liliana, envergonhada, estendendo as mãos em forma de concha, entregou-lhe esperançada aquela verde folhinha...

-Desculpe, só tenho isto.. - disse ainda, atrapalhada.

Quando se virava para refazer o caminho, a criança chamou-a com um sorriso e entregou-lhe em mão uma folha igualzinha, só que esta era dourada.

Liliana não esperava, ficou muda de espanto.

Como é que podia ser ?

O que tinha acontecido?

O que queria dizer isto?

Liliana dava consigo a meditar à beira-mar, sem saber bem se a folhinha existia ou se tinha só sonhado...


27 de Janeiro de 2006