sábado, abril 08, 2006

As duas aldeias...

Hoje era daqueles dias em que Liliana costumava pegar em si e pôr-se a escrever, como quem toca piano e sabe de cor o sítio exacto onde colocar os dedos.

Mas em vez disso resolveu sair.

Tinha chovido, foi ver nas redondezas os estragos da intempérie. Em vez da escrita a escorrer-lhe da ponta dos dedos, era a água a escorrer-lhe por fora e por dentro.

A Terra dessedentou-se, pensava, mas precisava ser assim tão violentamente encharcada, fustigada tão fortemente? Até os elementos têm os seus dias...

Campos fora havia pequenas poças aqui e ali, ramos caídos, uma pernada maior, um pedaço de hera que se desprendera, vários indícios da bravura com que se abateram a água e os ventos violentos naquelas bandas.

Nas redondezas não se viam pegadas, nem gente, nem animais, tinham vindo por ali ultimamente. Com mau tempo não há quem não se proteja...

Encontrara um botão, perto de um monte de pedras ao pé do poço. Sempre que ali

vinha espreitava e dizia: -Aaaah!.. e ouvia o som de volta.

Na água, cujo nível tinha subido consideravelmente, boiavam pedaços de folhas e ervas. Ouvia barulhos estranhos aos quais ficava atenta, tentando adivinhar o que seriam.

Dali avistava-se a montanha, além deste gigante ficava o vale imenso com o rio, que o percorria serpenteando e separando as duas aldeias, uma em cada margem.

Sempre em competição, as aldeias, a ver a que levava de vencida: nas festas a melhor música, nos animais, nas colheitas e até nas romarias. Mesmo na criançada: uns porque tinham visto um lagarto com asas, os outros que não, que não, isso não existia e ninguém conseguia ter melhor cão do que aquele que achava tesouros, coisas escondidas e antigas...

Aí, lembrava-se, tinha subido de tom a disputa e chegado aos adultos, que os achados de um lado eram melhores que os do outro; uns que as grutas eram maiores que as do outro lado... Não fora o tremor de terra a gerar a união de esforços e tinham chegado a vias de facto a dada altura.

Liliana ficou a pensar que, tal como os individuos têm necessidade de se afirmar e fazer ressaltar o que é particular e único neles, o que no fundo os distingue dos demais, também a dimensão social e de entreajuda vem à tona como factor de sobrevivência em qualquer comunidade. É assim com as pessoas, as aldeias, os países...

É preciso relacionar, ter mente de cientista e observar como quem espreita ao microscópio e se vê a si mesmo na lamela a espernear...

Liliana ria-se sózinha, tinha passado mais um dia.

6 de Abril de 2006

2 comentários:

Isabel José António disse...

O que é muito curioso nestas histórias é a sua tendência para constituirem observações de um quotidicano sonhado, mas com repercussões profundas no SER da Liliana...

Parabéns!

Isabel

Isabel José António disse...

Cientista é mesmo aquele que, munindo-se dos aparelhos e substâncias necessárias, vai fazendo tantas experiência quantas as mnecessárias para se aproximar da verdade. Ainda assim pode ser uma verdade relativa que acesso a outro patamar e possibilite uma nova descoberta.

A Liliana tem essa faceta de observar. DE tentar experimentar todas as possibilidades e de as analisar a quente e a frio.

Grande alquimista esta Liliana.

Muito bom texto.

Um abraço

José António