sábado, abril 08, 2006

O bicho...

O ar estava abafado e Liliana, que andara toda a manhã a colher ervas medicinais para pôr a secar, estava cansada.

Sentou-se numa pedra à entrada da gruta e pensou que no seu interior devia estar muito mais fresco que ali.

Precisava espalhar as ervas primeiro à sombra, para que secassem lentamente, assim os seus princípios activos mantinham-se de forma mais segura.

Depois de mais esse esforço, olhou em volta e o tempo enevoado era no entanto quente, pesado, sem que uma brisa viesse suavisar aquela tarde.

Entrou pela abertura disfarçada, desceu e ía antecipando a frescura e o descanso, quando de repente se deparou com tudo remexido e tresmalhado pelo chão. Algum bicho tinha andado por ali...

De vez em quando havia animais que se aventuravam pelos túneis até à gruta e aquela sala maior que usava como sua casa, era visitada por intrusos normalmente mais pacatos e inofensivos.

Depois de tudo arrumado, finalmente sentou-se e lentamente foi-se relaxando.

O ritmo cardíaco abrandou, o número de respirações e a amplitude das mesmas, o ritmo do pulsar do sangue nas veias, tudo parecia abrandar progressivamente...

Fechou os olhos e sentiu-se resvalar como quem cai num abismo enorme e fundo que parecia não ter fim.

Passado um pouco ainda continuava a cair.

Caía mais e mais, não havia meio de terminar até que sem saber porquê, começou a planar.

Voava como quem não tivesse feito outra coisa toda a vida. Mas só tinha sentidos, não tinha corpo. Podia ver, mas não se via. Podia ouvir ou sentir odores, mas sem ser com um orgão especial do corpo que não tinha. Toda ela ouvia, toda ela sentia enquanto planava, sem corpo, sem asas, sem nada...

Era bom e ao mesmo tempo estranho, sem fazer diferença alguma entre uma coisa e outra.

Era translúcida, planava e pronto.

Também nem sequer pensava, observava tudo o que via numa dimensão diferente, como se fosse natural perceber tudo e saber tudo acerca do que via.

Um barulho despertou-a daquele voo, daquele planar sem asas, viajando mais depressa que a luz, estava na caverna de novo.

Um pouco tonta, olhava em redor tentando perceber de onde vinha o barulho que ouvira.

Tudo em sossego. Nem um restolhar, que era costume quando um animal caía inadvertidamente numa das entradas da gruta. Mal sentia o cheiro humano, afastavam-se naturalmente.

Desta vez não, tinha sido um bicho qualquer espavorido, com dimensão suficiente para derramar recipientes, arrastar roupas e tudo. Pôs-se a escutar, tentando ao menos detectar de que lado viria o som.

Cada vez mais atenta ao mínimo ruído, lá se ajoelhou encostando o ouvido ao chão, para melhor detectar o som e que tipo de som. Sem dúvida vinha do túnel que conduzia à floresta. Levantou-se, dirigindo-se a esse lado da gruta, quando de novo se ouviram cascos, nítidamente agora. Cada vez mais depressa conforme se aproximavam.

Liliana correu pelo túnel fora, atrás daquele torpel, até se deixar de ouvir qualquer barulho de novo. Dada a distância percorrida, pouco faltava para a saída. Correu um pouco mais até saír também. A tarde já chegara ao início do seu fim.

Ao longe, pela silhueta, uma cabrita maltêsa abanava a cabeça, tentando libertar-se de um pano velho ou serapilheira, que se havia enredado nas suas presas não a deixando livre para poder ver.

Liliana, abanando por sua vez a cabeça, ainda incrédula, sorriu ao final de mais um dia.

7 de Abril de 2006

4 comentários:

Isabel José António disse...

Um bicho... inesperado, talvez um pouco assustador! Mas, afinal, foi um desafio para Liliana, levando-a a transcender-se!

Parabéns!

Isabel

Isabel José António disse...

Mais uma viagem astral da nossa Liliana! E que viagem!

Transcendeu-se, transformou-se e regressou de novo ao seu estado mais comum, mantendo, no entanto, toda a essência do seu SER.

Muito alegórico este conto e bem escrito.

Um abraço

José António

Pedro Melo disse...

Olá! A Isabel aconselhou (e ainda bem) uma visita a este blog!
Bem, adorei, são contos fabulosos que levam a um profundo despertar dos sentidos para descobrir um pouco mais para alem do que as proprias palavras dizem. Passarei por cá mais vezes!!!

Hata_ mãe - até que a minha morte nos separe Hugo ! disse...

Por aqui estive, saboreando cada palavra do texto.