quarta-feira, maio 27, 2009

O Carreiro




Liliana olhava com atenção aquela formiga trabalhadora que transportava um peso maior do que o do seu corpo...e como ela andava ligeira!
O carreiro era novo por ali, talvez tivessem mudado de casa, pensou.
Uma atrás da outra, cruzando-se com as que vinham em direcção contrária, reconhecendo-se ou cumprimentando-se durante breve paragem, não paravam para descansar à sombra ou debaixo de uma folha quando o sol estava a pique.
Impressionante, pensava, até parecem tentáculos de um só ser, onde não há lugar para se ser diferente, para além da especialização da tarefa de que se incumbiam, umas operárias, outras gueerreiras, outras ainda cuidando do armazém e do formigueiro e a trabalharem o tempo todo.

Isto é a sociedade perfeita, para o nível de consciência deste bicho, dizia pensando alto.
Todos os sentidos e percepções existem àquele nível. A formiga quando sobe um tronco não cai porque não sabe o que é isso...só há aquele plano, e como tal a Vida ampara-a no plano onde ela vive.

Talvez que a "gravidade" ou "peso" das ideias delas seja a obscessão do caminho e de tal forma é tão concreto que as contém...
Da mesma forma, quem sabe se não era a "leveza" ou "anti-gravidade" dos pensamentos dos místicos o que fazia com que levitassem...

Seja como for, ía cogitando, estes pequenos seres merecem-me toda a atenção...através deles, posso ver os caminhos idênticos que, por rotina, também costumo fazer...
Não fora o ter-me retirado há muito para esta gruta, quem sabe viveria ainda também numa espécie de rebanho humano, onde a individualidade se extingue, não pela nobreza da defesa do que é um bem para todos, mas pela opressão dos que vendo mais, se valem da cegueira colectiva e que tocando flauta, a todos encaminham para o precipício, pensando ilusoriamente que não vão junto...
Somos uma família humana, um formigueiro, ao nosso nível, mas temos a capacidade do raciocínio e da consciência, que nos permite escolher sair fora do carreiro.Subir a um outro nível, ter outra percepção e correr o risco de ser tomado de ponta por tentar avisar o resto do formigueiro da VERDADE, do que se passa com a sua vida, dos perigos que se avizinham lá á frente,... que o formigueiro está perigosamente demasiado perto do rio para quando vierem as cheias...enfim, Liliana pensava assim nos paradoxos da vida.

Nas aldeias, havia ditados de sabedoria, que aos poucos íam sendo esquecidos.
Tinham em poucas linhas, autênticas lições do conhecimento.
Liliana lembrava-se de alguns, mas o que mais retinha era aquela noção de que muita gente junta não se salva, ou então de que, quando todos te dizem sim, o melhor é perguntares-te o porquê disso, pode acontecer que algo de muito errado se possa estar a passar contigo... Eram noções que faziam eco cá dentro e que não mais se esqueciam.

A Natureza é um livro aberto que temos ao nosso dispor..., ía prosseguindo no seu discorrer pelo campo fora.
Quem sabe eu não sou apenas o sonho de uma formiga antiga?

O fim do dia chegava, com um lindo pôr do sol.

Liliana voltava por um carreiro à sua gruta, pensando como se enraízam em nós os hábitos, como se fossem àrvores..., tal como as noções dos ditados populares,...bem..., pensou sorrindo : ...esta dos hábitos fica para pensar amanhã...

6 comentários:

Isabel José António disse...

Liliana voltava, como sempre, a encantar-nos com as suas histórias! Quer estas fossem inspiradas por uma pequena formiga, uma pedra ou uma folha caindo, suavemente, de uma árvore, a verdade é que Liliana tudo observava e, assim, nunca deixava de nos surpreender!

Um abraço,

Isabel

**Viver a Alma** disse...

Salvé Liliana!
Peço perdão pela demora...mas há situações na vida que nos deixa pouco tempo, mas nunca esqueço quem me visita e sobretudo com quem sinto afinidade, como é o caso.

Este post, revela bem o tempo em que vivemos...."o das multidões" como é chamado ao Kaliuga! - princípio do fim.
Concordo com a analogia em relação ás formigas e sobretudo: "muita gente junta...."
Pessoalmente detesto hoje o que outrora gostava deveras: estar rodeada de gente, confraternizar, jantares e almoços nos restaurantes da berra..
Hoje sou o oposto...
Mas não sou bicho do mato.
Sei agora é para onde vou e quero assim, por isso disse "presente"! - há quase 11 anos.

Grata pelas passagens por lá.

Abraço meu e sempre
Mariz

ESPAVO! - como em MU

Isabel José António disse...

Querida Amiga Liliana,

Muito lindo, inspirado e inspirador este delicioso conto.

"A Natureza é um livro aberto que temos ao nosso dispor",

A questão é que para o podermos ler temos de aprender primeiro a LER. E esta aprendizagem para se nele (livro) se ler não é feita nos bancos das escolas, faculdades, etc....

E se todos fossemos frequentar este tipo de aulas? Que diriam as suas formigas a esta proposta?

Um grande abraço

José António

CarlaSofia disse...

«Quem sabe eu não sou apenas o sonho de uma formiga antiga?»

Quem sabe se a nossa consciência é o sonho de uma consciência maior?

Semelhante à formiga que dirige a sua vida para o trabalho, devia o homem trabalhar no crescimento da sua auto-descoberta.

Adoro o mundo de Liliana

beijinhos
~universosquestionáveis~

Maria Carmo disse...

Querida Liliana,

Muito obrigada por ter passado, já há bastante tempo, no meu blogue. Tive que fazer uma pausa (por falta de tempo da minha Filha, que me ajuda a blogar) - mas cá estou de novo e sempre a enviar um abraço a todos os meus Amigos!

Hoje já deixei um novo Post.

Vemo-nos por lá?

Maria Carmo

Oliva Campos disse...

Olá Liliana!

Muitas vezes pensamos e observamos as nossas queridas irmãs e vizinhas formigas(temos algumas em casa neste momento-convidámo-las por uns instantes e elas instalaram-se....) Têm, de facto, todo o mérito de serem boas operárias e excelentes cidadãs na sua mini-comunidade, pois raramente se desviam do seu carreiro e nunca se cansam ou se atropelam com os grandes fardos "às costas". Contudo, tal como pensava Lilana, é muita criatura a fazer toda ela o mesmo. É muito "carneirismo", mesmo sendo um trabalho indispensável e para o bem comum. Quando levantarão as formigas os olhos para admirar o alto, nem que seja por ténue curiosidade? Será que, querendo fazê-lo, a sua constituição física lhe permitirá? (temos que consultar uma enciclopédia de Biologia).
Quase sentimos pena da formiga que trabalha todo o ano e nem pára por escassos segundos para ouvir a melodia do vento ou chorar a morte de uma companheira sua, vítima de pés gigantes dos humanos (os nossos, por exemplo).
São admiráveis as formigas, mas talvez nos regozijemos mais com o desapego da cigarra que, pobre imprudente, vai morrer, não tarda, com a chegada da senhora das nuvens densas e misteriosas.
Todos fazemos falta. E a Liliana, indubitavelmente.

Com dedicação.

O Cisne e a Sereia